sábado, 30 de julho de 2016

Crónica dez!

À décima crónica, o Nuno pede-me periodicidade e um dia certo para publicar. Respondo-lhe que sim, sem hesitar muito, com a primeira coisa que me vem à cabeça.
– Ok, então fica mensal e comprometo-me ao penúltimo dia de cada mês.
Reajo muitas vezes assim. Sem pensar muito. Para o bem e para o mal, muitas das coisas na minha vida aconteceram desta forma. E algumas não foram mal.
O que é paradoxal com outros lados meus, muito meditativos e procrastinadores.
Quando lhe respondo não faço a menor ideia do que vou escrever mas tenho uma espécie de fé que me faz acreditar que o vou fazer.
Ele sugere uma lista imensa de actualidades, esquecendo que não tenho veia jornalística. Não me apetece agarrar nenhuma das suas sugestões. E sei que escrever me está a ficar cada vez mais difícil.
Eu que escrevia a metro (sobretudo para mim própria e utilizando a escrita como uma coisa catártica e de externalização do meu mundo interno) experimento agora dificuldades de alinhar palavras e pensamentos. A estranheza terá a ver com o facto de a escrita agora poder ser lida por outros?

Talvez. Eu gosto de achar que não me levo muito a sério mas talvez me comece a levar um bocadinho a sério. Porque não?
Sério é o gosto que continuo a ter pela leitura e pela escrita, séria é a minha perspectiva que pode ser pouco profunda mas que é verdadeira com quem sou, séria é a humildade de me considerar do meu tamanho (nem maior, nem menor) e sem pretensões.
Interessam-me crescentemente os processos criativos. Preciso disso para não morrer de realidade, alguém me disse.
Sou uma andarilha por contextos e eventos culturais diversos. São formas que encontro de ver o mundo com outros olhos, outros sentidos, outras linguagens e de não ficar fechada na minha forma de pensar. Faz-me sentir e pensar, sentimentos e pensamentos que não teria apenas por minha conta.
Ainda agora vim de assistir a um espetáculo de dança contemporânea no Espaço Alkantara, em Lisboa, com criações a partir de O Cansaço dos Santos de Clara Andermatt (1992) e Um gesto que não passa de uma ameaça, de Sofia Dias & Vítor Roriz (2011) interpretados em duetos por alunos do Programa de Estudo, Pesquisa e Criação Coreográfica do Fórum Dança. Adorei!
São linguagens expressivas fortes, tecnicamente elaboradas e que mexem connosco, fazem pensar... e isso de fazer pensar tem muito que se diga, numa época em que se retrocedem conquistas de civilização e direitos humanos e se erguem muros a muitos propósitos.
Por outro lado fui ganhando consciência de que escrever pode ser um acto criativo. Um acto de grande responsabilidade mas democrático, no sentido em que pode estar ao alcance de qualquer um e não apenas de artistas classificados.
Como dizia Foucault[1] (autor de As Palavras e as Coisas) uma das maiores tarefas do pensamento tem a ver com o problema do sujeito e a sua relação com a escrita.
Qual a minha relação com a escrita? E sobre quê então quero eu escrever?

Confesso que não ligo muito a bem materiais, ando seduzida por inspirações budistas e por filosofias de partilha mas por hoje quero falar de heranças, de legados, também de bens e de propriedades que tomam conta dos proprietários.
Falar não será bem o caso, porque só tenho interrogações.
Interrogo-me sobre qual o legado que quero deixar? E sobre as formas como lido com o legado que recebi?
As coisas e o resto. Sobretudo as coisas pelo valor real e simbólico que têm.
Que passagem de testemunho? Como é que os meus filhos irão entender-se (ou entender) com esse testemunho quando eu não estiver?
Gosto daquela ideia que só morremos quando morre a última pessoa que se lembra de nós.
Será que caí na velha armadilha da busca da eternidade?
Porque é que isto me ocupa?

Habito uma câmara de tortura, em caixa de vidro com projecções de contextos de vida – casa, trabalho, família, amigos, lazer. Um cubo mágico. Nessa caixa faz de conta existem várias torturas.
Às vezes é uma das faces que me esmaga, com realidade ampliada. O estado de não relação com aqueles que amo. Outras vezes é o chão que desaparece e deixa-me suspensa. Tento não respirar para não cair mais, com medo do abismo, da queda livre, do desconhecido. Outras vezes ainda é o espaço entre o tecto e o chão que diminui e me esmaga. Fico sem ar, sem horizonte e sem perspectiva. Sem acção. Outras vezes corre bem. Tenho momentos descontraídos, de alegria e de nutrição.
Mas nunca sei quando a seguir a caixa decide uma tortura diferente. E também não posso saber se aguento a próxima tortura. E perguntarão, porque raio não saio da caixa?
Não saio porque tenho medo. Também tenho medo ficando, mas é um medo conhecido.
Os limites das prisões que construímos laboriosamente são muito reais.

Acreditando que os planos para a vida são desarrumados pela própria vida, na maioria dos caos, sinto necessidade de preparar a velhice, sabendo que é impreparável.
Talvez não seja bem isso.
Talvez seja mais da ordem do que é que eu ainda quero fazer? Como é que sonho outra vez? Como é que engano a solidão?
Não sei muito bem. Estou numa fase da vida que me apetecia estar mais ligeira, mais desprendida e ando às voltas com o que me deixaram e com o que gostaria de deixar.
As coisas evocam memórias, contam histórias e exigem ser cuidadas.
Ainda mais no caso da minha família de origem modesta onde o património foi conseguido com sacrifício e muito trabalho.

Se ganhar perspectiva posso pensar que, em regra, o património subsiste apenas a algumas gerações e depois passa de mão, degrada-se ou transforma-se. São coisas, casas, terras, utensílios…nada por que valha a pena ocupar a vida.
Só que… um dia as casas que habitámos estavam cheias.



Isabel Passarinho


[1] Foucault, Michel (2015) O que é um autor? Lisboa: Editora Passagens

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