terça-feira, 9 de junho de 2015

Crónica Social - O Xico da Tina

O Xico faz hoje anos - 84 anos de uma vida dura de trabalho. Está casado há muitos anos. Nem sabe ao certo. Vive numa aldeia com a Tina, com alguma família e vizinhos por perto mas já com muitas baixas na sua geração. Não têm filhos. Com uma certa mágoa.

- Ninguém tem obrigação de nos ajudar! Diz a Tina. Cada um tem a sua vida e nós aqui estamos até que Deus queira.

O Xico é muito poupado nas palavras.

- Estamos cá de empréstimo, diz em nota filosófica.

Não vivem mal. Têm casas, terras, amealharam, não se renderam ao consumo, não gastam muito e ainda amanham uns bocadinhos de terra perto de casa de onde vão buscar cereais, os legumes, os frescos e algum sentimento de ocupação e utilidade.

Um pouco por todo o nosso pequeno país, sobretudo nos meios mais rurais, é frequente as pessoas serem designadas por uma relação especial. É uma espécie de identidade relacional em que a definição de um se faz a partir de uma relação geradora com outro. Mas o Xico e a Tina estão velhos e pesa-lhes a vida. E a solidão. A velhice é uma chatice!

Por mais que se fale em envelhecimento ativo e que a publicidade utilize cada vez mais senhores e senhoras de cabelos brancos, sorriso jovial e aparentemente sem problemas, desconfio que seja uma fase da vida menos simpática.

Bom, na verdade cada fase da vida tem os seus desafios e provavelmente aquela que estamos a viver é sentida como a mais dura.

Já tenho algumas amigas que contraíram velhice e que se queixam. As perdas (de dentes, de audição, de cabelo, de elasticidade, de frescura, de paciência…) parecem superar os ganhos - de peso, de gravidade, de sabedoria, de dores…

- Já viste a pele das minhas mãos? – Perguntava-me uma delas, à beira dos 60 e visivelmente alarmada.

E a memória? Ou as suas falhas. E o sentimento de aproximação ao fim de linha? E a dificuldade em voltar a acreditar, a ter sonhos, a desejar qualquer coisa ou alguém? E o pânico de ficar dependente, de não ser autónoma? E a perda de relações significativas?

Mas afinal quando é que estamos velhos ou velhas?
Recuso o limiar instituído dos 65 anos. Até porque já não corresponde à idade da reforma, que era o marco da improdutividade a partir do qual já podíamos ser velhos.

Conheço velhos de 20, de 30 anos, de 50, de 70 e de 80 e muitos. São todos diferentes, é verdade. Mas também não caio na esparrela de dizer que a velhice é um estado de espírito. Conheço velhos cheios de medo de morrer. Tristes. Desconfiados. Avarentos. Sós. Amargurados. E outros que não. Algumas pessoas parecem não ter idade.

Ou melhor, poderiam ter qualquer idade porque esse é um dado que não importa muito. Pessoas que não desistem. Que riem e choram. Que tem dias bons e outros nem por isso mas que não se deitam sem agradecer, seja à vida ou a qualquer outro ser ou entidade. Pessoas que continuam a aprender, a desafiar-se, a querer estar melhor consigo e com os outros. Que têm amigos de todas as gerações. Que vão ao baile ou ao museu. Que arriscam compreender outras perspetivas.

O Xico teve recentemente um pequeno AVC que o deixou estranho. Fala ainda menos, já não vai à horta, dá uma volta à casa e senta-se, cansado. O seu território ficou mais estreito e mais doméstico. A televisão ficou mais longe. Olha para ela sem ver, sem ouvir, sem interesse.

A Tina, que é uma mulher de saúde frágil, desmultiplica-se em cuidados e desvelos para ver o seu homem novamente ativo e cheio de afazeres. Teme por ele e por si. Está triste. Sente a vida como um calvário a cumprir, como um problema sem solução. E zanga-se quando lhe apontam algumas possibilidades.

Na sua forma de entender a vida, os cuidados profissionais e as respostas institucionais não são opção. Não para si nem para o seu marido.

O Xico sente a vida gasta e as palavras também. Gostava de ver mais crianças na aldeia. Isso e os campos todos tratados e cheios de árvores de fruto como quando eram novos…

Isabel Passarinho

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